UMA REFLEXÃO A PARTIR DA ÓTICA FRANCISCANA
Leituras: Hab 1,2-3;2,2-4; 2Tm 1,6-8.13-14; Lc 17,5-10
Tema-mensagem: Fé, dom que nos faz crescer na pessoa amada e transportar montanhas
Sentimento: fé
Introdução:
A celebração deste domingo nos leva ao coração de nossa existência ou vida de cristãos: a graça da fé. Nascemos, vivemos e crescemos da fé assim como os raios nascem, vivem, crescem e se expandem a partir do sol.
1. O profeta Habacuc e seus “Por quês” (Hab 1,2-3;2,2-4)
Quem nos introduz no mistério da fé, neste Domingo é o profeta Habacuc, um dos menores entre os profetas menores, mas que nem por isso seja de menor importância.
O trecho proclamado na primeira leitura de hoje, vem perpassado por uma grande tensão entre Deus e ele. Ou melhor, entre a compreensão que Habacuc tem de Deus e sua ação, sua resposta: a aparente falta de ação e de resposta de Deus. Diante das desgraças, dor, sofrimentos, catástrofes, lutas e contendas pelas quais está passando, tanto ele como seu povo, Habacuc não cessa de implorar. Mas, Deus parece surdo, distante, indiferente. Daí sua primeira lamentação: “Senhor, até quando terei de clamar, sem me atenderes!? Até quando deverei gritar a ti: “Violência, sem me socorreres?”
Estamos diante da angústia e do eterno grito do homem de fé de todos os tempos que em meio à sua desgraça, muitas vezes injusta e inexplicável, sentindo-se abandonado, até mesmo pelo seu Deus, não pode, não sabe ou não consegue dizer outra coisa senão e sempre e de novo: “Por quê? Por quê? Até quando, Senhor?”; angústia e grito manifestados pelo próprio Senhor na Cruz: “Pai, por que me abandonaste?”
A tensão no coração do profeta, causada pela sua incompreensão diante do silêncio ou do/a (falta) posicionamento de Deus torna-se até mais forte e aguda pelo fato de Javé dar-lhe uma resposta ainda mais “absurda”: servir-se dos babilônios e dos caldeus como instrumentos de sua justiça (Hab 1,5-12).
Parece o fim da picada. Está certo que os fiéis sejam e devam ser punidos pelas suas infidelidades, pelos seus erros e crimes, mas que o sejam através do Deus santo e justo e jamais por povos mais ímpios, muito mais pecadores que ele, seu povo eleito. Por que submetê-lo a tamanho vexame e escárnio diante das nações pagãs?! Por isso, em Habacuc 1,12-17, o profeta num gesto de ousadia desafia Deus a dar-lhe uma resposta com uma segunda lamentação: “Não és tu, SENHOR, desde o início, o meu Deus, o meu santo, que não morre?”
A resposta vem mais adiante, no capítulo segundo, e que compõe a segunda parte da leitura de hoje. Deus falou a ele e, por meio dele a todos os homens e para todos os tempos. Por isso a resposta devia ser escrita em tábua para que todos a pudessem ler e conhecer: “Escreve esta visão, estende seus dizeres sobre tábuas para que possa ser lida com facilidade” (Hab 2,2).
Em primeiro lugar é preciso ser paciente, diz o Senhor. Por isso: “se demorar, espera, pois ele virá com certeza, e não tardará” (Hab 2,3). A caminhada do justo é de fé, de pôr segurança nas mãos de Deus no meio da incerteza, da dúvida e da insegurança do homem. Durante esta espera “o injusto, se inchará de orgulho” (Hab 2,4), isto é de futilidades e vaidades que o levarão, indubitavelmente, à morte. Enquanto isso e ao contrário, “o justo viverá por sua fidelidade” (idem). Este dito, como uma perola preciosa, escondida na profecia de Habacuc, servirá, mais tarde a Paulo para afirmar que só a fé em Cristo nos dará a salvação (Rm 1,17) e a justificação (Gl 3,11).
2. Uma fé que transporta montanhas (Lc 17,5-10)
A perícope do Evangelho de Lucas para missa de hoje, começa com um repentino pedido dos Apóstolos: “aumentai, Senhor, a nossa fé” (Lc 7,5)
2.1. Fé, dom de um empenho
Diferentemente de outras ocasiões, nas quais a iniciativa da fala é de Jesus, nesta de hoje quem começa são os apóstolos.
Além daquela vez em que pediram “Senhor, ensina-nos a rezar” esta é uma das poucas vezes que os Apóstolos se comportam com um mínimo de espírito de discípulos. Nas demais ocasiões haviam se comportado mais como funcionários mesquinhos, carreiristas, sempre desejando e procurando satisfazer os próprios interesses. Aqui, não. Pedem aquilo que constitui a essência de um discípulo: a fé. Tudo indica que a fala, o chamado, a presença do Mestre havia começado a incendiar lhes os corações. Sentem, porém que sua adesão é ainda muito pequena, frágil, limitada. Daí a mencionada súplica.
A causa que despertou neles este sentimento com este pedido encontra-se nos versículos imediatamente anteriores nos quais Jesus expusera diversos ditos ou sentenças referentes ao bom andamento da vida comunitária. Entre eles encontramos o cuidado para que se evitem os escândalos, principalmente dos pequeninos e a necessidade de perdoar o irmão não apenas sete, mas setenta vezes sete (Cf. Lc 17,1-4). Ora, o que Jesus propõe, humanamente falando, é completamente impossível. Escândalos e falta de perdão e de misericórdia sempre acompanham os seguidores de Jesus. Daí a surpresa e o pedido dos Apóstolos.
Vem, então, a resposta de Jesus: “Se tivésseis fé, do tamanho de uma semente de mostarda...” Uma resposta muito enigmática, estranha e provocativa, principalmente por sua brevidade. Em assunto de tamanha importância, nós esperaríamos uma bela e extensa exposição ou tratado não apenas sobre a fé, mas também e principalmente, sobre o caminho, as orientações, medidas e exercícios necessários para alcançá-la e perfazê-la.
No entanto, Jesus, através do exemplo da semente está apontando para o tudo da fé: o mistério do que parece pouco ou pequeno, mas, que contém tudo. Precisamos, pois, olhar para a semente. Nela se encontra o resultado, o fruto de uma longa história de luta, paciência, esperança, mortes e vidas, só para bem receber e fazer frutificar o dom da vida. Assim, neste minúsculo grãozinho, uma longa, admirável e grande história de amor, desejo e paixão de servir. É o milagre da gratuidade da vida que se dá mediante a comunhão da graça e do empenho.
O dito de Jesus, não está afirmando que a montanha será transportada para o meio do mar de modo imediato, como que ao toque de uma vara mágica. Está, antes apontando para o trabalho que há de se fazer para que o milagre aconteça: trabalhar, trabalhar, servir e servir, humilde e gratuitamente, sempre e de novo, sem jamais desanimar ou desistir.
Há uma pequena e antiga lenda acerca de um galo que tendo de viver num país tomado pelas trevas desejou com tanto ardor que se fizesse a luz, para que assim ele pudesse ver e encontrar os grãos de milho, que a luz de fato se fez. A lenda não está dizendo que a luz de fato, fisicamente apareceu, mas que aquele galo viveu até o fim da vida alimentado pela esperança da luz. Assim é a fé: uma grande paixão, um ardente amor, um profundo desejo que nasce da graça do encontro com a pessoa amada. É o que moveu Jesus desde sua encarnação até a morte e morte de Cruz, quando sim, e então, moveu em definitivo a montanha que o separava do Pai: a Cruz.
Por isso, na Cruz, o amor, a entrega de Jesus à vontade do Pai, que o abandona, nunca foi visto ou tratado por Ele como uma desfeita ou desgraça, mas uma bênção, uma graça. Assim, morrendo à própria vontade para estar na vontade, isto é, no abandono, do Pai, Jesus, a exemplo do grão de trigo que morre, nasce de novo, a partir do Pai. Ele é a pequenina semente que contém o tudo de nossa vida: Jesus Cristo crucificado, a fé que nos transporta da montanha do pecado, do afastamento para a proximidade, a intimidade de Deus e dos irmãos.
2.2. Servos inúteis
Jesus, segue então sua fala com um exemplo que parece não ter nada a ver com o ensinamento da fé. Tem-se a impressão de que esteja querendo passar-lhes mais um ensinamento: o da humildade. De fato, o exemplo dado no qual o servo está sempre pronto para servir seu senhor contém um belo ensinamento acerca da humildade.
Mas, Jesus como bom mestre está querendo introduzir os apóstolos no caminho da fé através de um exemplo. “Vocês querem ter uma fé que transporte montanhas, sirvam, sirvam e sirvam como aquele servo faz ao seu senhor, sempre, a toda a hora, sem jamais esperar nenhuma recompensa, retribuição ou consolação”.
Com este exemplo, tudo indica que na pergunta Jesus percebera que os Apóstolos ainda não haviam compreendido a essência do seu discipulado: o caminho de uma fé limpa, pura, totalmente gratuita. Ou seja, ainda estavam um tanto imbuídos do espírito mundano do interesse próprio, de levar vantagem em tudo.
Servo, aqui em vez de empregado, funcionário que trabalha por merecimentos ou conveniências é aquele que se coloca à disposição de seu senhor movido pela graça da afeição que nasce do mistério do encontro. Seu pagamento é a alegria de poder servir e nada mais. E isto é fé pura, limpa porque gratuita, sem porquê e nem para quê: Jesus Cristo crucificado, o coração da fé. A graça dos apóstolos de poderem ser seus discípulos ou servos, como Ele é discípulo e servo do Pai. Daí a conclusão: “Assim também vós, quando tiverdes feito tudo quanto vos pediram, dizei: ‘Somos servos inúteis; fizemos o que devíamos fazer’” (Lc 10,17).
Por isso, para nós cristãos, fé não é uma crença, uma doutrina, uma verdade, uma emoção, mas uma pessoa: Jesus Cristo crucificado. Por isso, exclamava São Francisco: “Tu és nossa esperança, Tu és nossa fé” (LDA 6). Jesus Cristo crucificado é a semente da fé, do amor, da Paixão de Deus que ao longo dos séculos veio sendo semeada e cultivada sempre de novo no coração dos homens. Esta semente se tornou o resumo do sentido, da felicidade, da alegria, da realização de toda a história dos homens e da criação. É este o sentido da grande exclamação da Igreja quando no coração da missa, logo após a consagração, exclama: “Eis o Mistério da fé”.
Assim, se os Apóstolos quiserem realmente um aumento de sua fé devem seguir também eles seu mestre, por este caminho, o caminho da cruz, caminho que transporta montanhas.
3. Não te envergonhes de dar testemunho de Jesus Cristo e de seu Evangelho (2Tm 1,6-8.13-14)
Na segunda leitura da missa de hoje, tirada da segunda Carta de Paulo a Timóteo temos um exemplo concreto daquele ensinamento de Jesus aos apóstolos acerca de como se consegue um aumento da fé; de como sair de uma fé, infantil ou “carnal” para uma fé amadurecida, adulta e espiritual.
A primeira parte desta carta começa com uma longa exortação para que Timóteo lute corajosamente pelo Evangelho, definido aqui por Paulo como “dom de Deus” que ou porque nos proporciona “um espirito de fortaleza, amor e sobriedade”.
Paulo sempre se compreendeu e definiu como um lutador ou combatente do evangelho. Por isso, não podia ser outra a sua exortação a Timóteo, fiel companheiro, ao qual lhe impusera as mãos concedendo-lhe assim, também para ele o dom do episcopado. Provavelmente o ambiente da comunidade de Timóteo era de medo e temor pelas primeiras perseguições que estouravam contra os cristãos por parte dos pagãos. Ora, o que se deve esperar de um cristão ordenado, principalmente de um ungido, senão que seja um cristão forte e batalhador. Jamais um dirigente tímido e excessivamente prudente “segundo a carne”.
Por isso, Paulo recorda a Timóteo: “Não te envergonhes de Nosso Senhor nem de mim, seu prisioneiro, mas sofre comigo pelo Evangelho, fortificado pelo poder de Deus” (2Tm 1,8).
Diante de um ensinamento tão claro e insistente como foi possível que muitos de nós cristãos tenhamos transformado o cristianismo – as comunidades cristãs, até mesmo as de religiosos – num lugar onde se espera, se deseja e se busca consolações, recompensas, projeções? Na origem do Cristianismo esse desejo sempre foi repelido como diabólico. Jesus rechaça Pedro que queria afastá-lo do caminho da cruz chamando-o de Satanás, os primitivos cristãos iam ao encontro dos seus algozes como quem vai para uma festa e São Francisco de Assis, chega a chamar de perfeita alegria poder suportar em nome de Cristo crucificado o fato de ser maltratado, expulso e arrastado pela neve pelos próprios irmãos.
Foi a mensagem de que o cristianismo, a religião não é de consolo mas de luta, de cruz, de fé, ouvida de uma fiel engajada, que começou a questionar a vida cristã acomodada da piedosa leiga Marina, levando-a a sua conversão e a abraçar a Vida e o exemplo de São Francisco professando a Vida e a Regra da Ordem Franciscana Secular (Cf. O Livro de Marina, Pilonetto Adelino, pág, 18). Eis o segredo que os apóstolos buscavam quando pediram ao Senhor que lhes aumentasse a fé.
Por isso, Paulo termina a exortação de hoje: “Guarda o precioso depósito (da fé), com a ajuda do Espírito Santo que habita em nós”.
Conclusão
A fé cristã tem um caráter próprio que a distingue de todas as demais: ela é uma Pessoa. É o próprio Filho de Deus que botou tanta fé no Pai e nos homens, os filhos amados de seu Pai, que se encarnou, morreu na cruz por nós e continua em nosso meio como o Deus conosco.
Por isso, de nossa parte, fé é crer nesta Pessoa e em tudo que ela representa: seu mistério. Crer, neste sentido e dentro da etimologia latina,significa crescer. Poderíamos então transformar o nosso Credo assim: “Eu cresço em Deus Pai, eu cresço em Jesus Cristo, eu cresço no Espírito Santo...”.
Neste sentido, crer é empenhar-se para trocar a subjetividade, a carnalidade do nosso eu pelo Espírito do Eu de Jesus Cristo. É trabalho, empenho, obra, luta. Por isso dizia São Tiago que só é possível mostrar a fé pelas obras e não apenas pelas palavras (Cf. Tg 2,18).
Durante séculos nós cristãos fomos muito ensinados e estimulados a guardar a fé e pouco a trabalhá-la, cultivá-la. Isso foi e é bom e necessário. Mas, se for só isso nos tornaremos uma semente infrutífera. Pois o destino da semente não é para ser guardada, mas cultivada. Precisa ser transformada em alimento ou semeada a fim de que em morrendo, possa nascer de novo, tornar-se uma árvore frondosa e de muitos frutos para todos.
O bem-aventurado frei Egídio, em seu breve tratado sobre a Fé, acentua que fé é um árduo e duro trabalho de trocar todos os bens terrestres pelos bens celestiais e eternos; que os santos procuraram realizar por meio de obras tudo o quanto fosse a vontade de Deus e que o que eles não conseguiram pelas obras o realizaram pelo santo desejo. Depois, termina dizendo que o homem que fizer isso será um homem de fé perfeita e que em pouco tempo chegaria ao estado de perfeição e de salvação. E conclui: “No entanto, um pecador, enquanto vive, nunca deve desesperar da misericórdia de Deus. Pois, dificilmente há uma árvore tão espinhosa e nodosa que os homens não possam fazê-la plana, bela e orná-la. Muito mais, não há no mundo um pecador, por mais grave que seja o seu pecado, a quem Deus não possa adorná-lo de muitos modos com graça e virtudes” (DE 2,22-24).
Eis a fé do servo inútil, do cristão, que transporta montanhas porque cresce em Jesus Cristo crucificado.
Marcos Aurélio Fernandes e Frei Dorvalino Fassini
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