Suspeitando ou não, cá estou, isolado contigo...
Nestes dias de isolamento ando refletindo sobre a experiência de estar despido de couraças e “nu” neste mundo. Percebam como esta pandemia tem feito a humanidade refletir. Como que uma proposição universal como esta, fez com que desvelássemos a nossa animalidade mais instintiva que busca a conservação da espécie, da nossa própria espécie, da minha espécie, do eu enquanto espécie, do eu enquanto ser, do eu enquanto indivíduo, do eu enquanto ente, do eu enquanto sendo apenas eu e assombra? Sou jovem, sou velho, sou uma criança, um adolescente... sou apenas eu. No fim, resta apenas o eu.
Acho belíssimo ver nas redes sociais inúmeras postagens desejando que tudo ocorra bem, que Deus nos livre deste mal. Correntes de oração – eu mesmo tenho feito - momentos de oração, missas transmitidas, lives orantes, lives críticas, lives céticas, lives econômicas... É, a humanidade quando se sente ameaçada, fica reclusa, eleva o dom da vida acima de qualquer outra necessidade. É nosso instinto! Somos assim! Aproveitemos este momento para conhecer nossa animalidade que tanto clamamos ser racional.
Nós não conseguimos nos ausentar ou não sermos, de certa forma, percebidos pelo outro. Utilizamos todas de maneiras possíveis para que saibam que estamos vivos, como um último grito de nossa racionalidade pedindo socorro. Intrigante. Estar confinado dentro de um quarto por seis dias, levou-me a refletir sobre a existência, a vida, crenças, verdades... tanta coisa acreditada e professada. Que momento indescritível.
Vejamos o número de memes engraçados criados para que tenhamos momentos descontraídos diante desta realidade que, no fundo, nos assombra. Por que será que temos tanto medo de assumir que estamos sentindo medo, pavor e estamos questionando nossa esperança? Somos humanos e, por consequência, dotados de uma finitude débil. Por que é tão difícil admitirmos isso, para transpor esta carência de perfeição que nosso ser possui?
Talvez eu esteja sendo um tanto quanto crítico e pessimista. Mas peço para que você analise. Algumas pessoas, antes que o Presidente da República fizesse seu lastimável pronunciamento, falavam que estavam preocupadas com a realidade do Brasil, preocupadas com suas vidas, porque trabalhavam sendo que poderiam contrair o vírus. Agora, após o pronunciamento, questionam o motivo pelo qual ainda permanecem em quarentena. Soa um tanto quanto controverso.
Ainda há aquele grupo cético que acha que os sintomas e situações vivenciadas com pessoas próximas é um ato desesperador do psicológico - consciente e inconsciente - querendo chamar a atenção para si, ou que está “somatizando” tais sintomas, ou pior ainda, que está sendo frágil psicologicamente e permitindo ser atingido pelas notícias anunciadas pela mídia.
Pois bem, dentre os grupos, restam ainda aqueles que, por desespero ou em um ato de amor a própria vida, esvaziaram as prateleiras dos supermercados e farmácias para ficarem precavidos para o período de quarentena. Outros que permaneceram trancados dentro de suas casas esperando a parusia do Senhor ou as Trombetas tocarem. Ah, e não podemos esquecer dos desobedientes, que teimam em andar pelas ruas mesmo sabendo que são do grupo de risco.
Acredito que faltam outros tantos grupos, mas o intuito não é apenas fazer uma análise sociológica ou antropológica, mas levar à reflexão. Percebam que subliminarmente permanece a necessidade do ser humano de conservar sua própria vida, seja negando a realidade que está, seja recusando acreditar em um fenômeno que irrompe diante de si, ou levando a massa a não beirar a um colapso histérico por medo de não conseguir controlar as consequências destes atos. Buscam insistentemente algum culpado. Acusam. Criam teorias. Forjam motivos. Mas no fim, todos desejam apenas a sobrevivência da sua espécie, da sua mesmo, a mais íntima possível, porque o que realmente importa é o eu.
Percebamos que durante esse período permitimos que nosso ser manifestasse as suas sombras, mas também as suas perfeições. Vede quanta atitude louvável presenciamos nestes últimos dias! Pessoas ajudando umas às outras. Doando suas próprias vidas para que outras se salvem. Ainda aquelas que preferem arriscar as suas para que o outro possa desfrutar de mais alguns segundos ou minutos com seus entes amados. Quanta atitude genuína e bela, constato nestes momentos o quão nobre é nossa humanidade e que ela só pode ser entregue para cada um de nós como sendo um dom. Há algo mais perfeito que a criação divina? Quão perfeito é o ser humano mesmo possuindo inúmeras falhas.
Pensem comigo! Será que o ser humano poderia se autocriar? Poderia ser obra de suas próprias mãos? Mas de onde viria tamanha perfeição? De uma ideia apenas? Tantos questionamentos. Acredito que, necessariamente, há um Ser Perfeito e Todo Poderoso que sustenta tanta perfeição. É necessário que haja este Ser Supremo em bondade e sabedoria, pois de onde viria a nossa bondade, nosso amor, nossa vida senão dEle? Seriam todos predicados imperfeitos e fadados ao fracasso. Mas não. Participamos deste Sumo Bem, que é verdadeiramente perfeito e existente. Que ordena tudo e todos, até mesmo os corações desesperados e desordenados.
Sim, você a de concordar comigo. Poderia existir alguma perfeição se estas fossem obras do pensamento humano? Não. Seriam ideias imperfeitas. Encontraríamos debilidades em sua constituição. Por isso, sim, eu repito, há a necessidade de existir um Ser que possui em si todas as características perfeitamente ordenadas e imutáveis para que, nós, seres finitos e mutáveis, possamos participar destas perfeições por meio de nossa frágil e débil humanidade.
Ao olhar pela janela do meu quarto durante estes dias que estou em isolamento, por estar com suspeita deste vírus, que tanto nos amedronta, eu consigo escutar tantas coisas... pássaros, vento, crianças brincando, pessoas conversando, automóveis circulando... ruídos e mais ruídos, mas sabe o que no fundo eu consigo perceber? Após fazer um grande exame de percepção da realidade e um exercício abstrativo intenso, encontro um enorme silêncio que paira no fundo de tanto ruído. E é neste silêncio que eu recebo o alento à minha alma. É exatamente neste silêncio que eu consigo perceber a presença deste Ser infinitamente perfeito e bondoso que nos dá oportunidade de, até nos momentos mais difíceis e desafiadores, perceber que Ele está aí, ao nosso lado, nos acompanhando, mesmo que seja imperceptível.
Após perceber esta presença, meu coração deixou de gritar por liberdade, de querer que sessassem comentários que, por vezes, são maldosos. A única coisa que ele clama insistentemente é que eu continuamente consiga desvelar meus sentidos para sentir o silêncio revelador de tamanha Perfeição. E quanto as outras coisas? Pois bem, tornam-se atos demonstrativos de confiança e amor que depositamos nas mãos de Deus. Tudo passa. O tempo será impiedoso com aqueles que vivem com seus corações presos no passado. Por isso, é necessário lançar um olhar para o agora, o instante presente, perceptível em nosso interior e vivê-lo intensamente. Pois o amanhã é incerto e o passado existe apenas enquanto passado no presente. Soa fácil, mas sei que não é. Sou assaltado frequentemente com o desejo de sair, de arrancar do meu corpo as dores e incômodos que sinto, mas resolvi acolher a realidade ressignificando, quando consigo, o momento presente. Por isso partilho esta reflexão, pois depois de alguns dias tentando negar a realidade que me assombra, decidi aproveitar estes momentos para sentir aquele silêncio profundo que paira por detrás de todo o ruído que nos circunda.
Sigamos esperançosos e não percamos de vista o nosso ponto de partida. Aceitemos a nossa finitude humana, ao aceitar, o nosso ser se abre para a Graça divina e clama ao Senhor que capacite o nosso coração imperfeito com os dons necessários para, assim, vivermos uma vita beata confiando a nossa existência unicamente a Ele, que é o Sumo e Perfeito Bem.
De seu irmão
Frei Uellinton Corsi, OFM.
“Intellige ut credas verbum meum;
Crede ut intelligas Verbum Dei”
Resta-me a cruz...
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