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SOLENIDADE DA SANTISSIMA TRINDADE


Leituras: Ex 344b-6.8-9; Sl Dan 3; 2Cor 13,11-13; Jo 3,16-18

Introdução

Com a solenidade de Pentecostes, encerramos, no domingo passado, as celebrações dos grandes ciclos ou mistérios da Vida e da Missão de Jesus: Natal/Páscoa. Hoje, com a Festa da Santíssima Trindade, a Igreja dá início ao ciclo do Tempo Comum, Tempo de sua Vida e de sua Missão no mundo e na história.


1. O único Deus misericordioso e próximo

A revelação do maior mistério de nossa Fé - a Trindade divina - na História Sagrada, deu-se paulatinamente, muito mais paulatinamente que o mistério do Deus Único e Uno. No Antigo Testamento, a grande revelação do Deus único deu-se com o nome de YHWH (Yahweh) – “Eu sou aquele que sou” (Ex 3,14). Esse é o “nomen majestatis” (nome da majestade), dizia Agostinho.

Nome da majestade porque nele tudo é e tudo existe. Fora dele nada é, nada existe. Ao mesmo tempo é uma promessa e uma garantia de fidelidade porque só Ele é fiável e capaz de dar um fundamento inabalável à caminhada e à história de seu Povo. Fora dele os homens andam às apalpadelas e no escuro. Assim, o Povo poderá fundar sua história nessa presença fiel, como antes o fizeram Abraão, Isaac e Jacó.

O nome com o qual Deus se revelou em seu mistério a Moisés, porém, não satisfazia aos israelitas. Era grande demais. Queriam um deus definido e definível de acordo com seus interesses. Por isso e para isso fabricam um deus a partir de si e para si e começam a adora-lo: o bezerro de ouro (eidolon = imagenzinha). Traem, assim, a aliança com o Deus misterioso. A partir de então o que outrora no deserto de Sinai, vai se repetindo hoje, pelos séculos a fora. Hoje, o “bezerro de ouro” aparece de formas muito variadas como o dinheiro, o mercado, a ciência, o poder, o consumo, a fama, etc.

A primeira leitura de hoje, talvez, seja a página mais expressiva da identidade de Deus revelada no Antigo Testamento, isto é, do Deus Vivo e misterioso. O Catecismo da Igreja Católica faz a seguinte consideração:

“Depois do pecado de Israel, que se afastou de Deus para adorar o bezerro de ouro, Deus atende a intercessão de Moisés e aceita caminhar no meio dum povo infiel, manifestando deste modo o seu amor. A Moisés, que Lhe pede a graça de ver a sua glória, Deus responde: «Farei passar diante de ti toda a minha bondade (beleza) e proclamarei diante de ti o nome de YHWH» (Ex 33, 18-19). E o Senhor passa diante de Moisés e proclama: «O Senhor, o Senhor [YHWH, YHWH] é um Deus clemente e compassivo, sem pressa para se indignar e cheio de misericórdia e fidelidade» (Ex 34, 6). Moisés confessa, então, que o Senhor é um Deus de perdão» (CIC, 210).

No cerne do nome de Deus, revelado no Antigo Testamento, está, pois, a misericórdia, a fidelidade e a proximidade. Um Deus que quanto mais seu Povo o abandona mais e maiores iniciativas Ele toma para reconquistá-lo; quanto mais ele se afasta mais Ele o procura; quanto mais seu povo se mostra infiel, Ele, com uma ternura entranhada de esposo apaixonado e fiel, sempre o perdoa e o recebe de volta. É a esse Deus que Moisés se curva até o chão e prostrado por terra exclama: “Senhor, se é verdade que gozo de seu favor, peço-te, caminha conosco; embora esse seja um povo de cabeça dura, perdoa nossas culpas e nossos pecados e acolhe-nos como propriedade tua (Ex 34,8-9).


2. A graça da fé de Jesus Cristo, do amor do Pai e da comunhão no Espírito Santo (2Cor 13,11-13)

A segunda leitura de hoje vem de Paulo, de sua segunda Carta aos Coríntios, a mais pessoal e, também, a mais rigorosa de todas. Neste pequenino trecho, de apenas três versos, encontramos a conclusão de toda Carta. Ela contém uma calorosa exortação a um bom e exemplar convívio fraterno por parte da comunidade de Corinto. Chama-nos a atenção, porém, o sentimento com o qual Paulo começa essa conclusão: Irmãso: Alegrai-vos! (2Cor 13,11).

A alegria, juntamente com a paz, sempre foi o sinal mais expressivo dos tempos messiânicos, iniciados com a Ressurreição do Senhor. Se Jesus, por sua ressurreição, é a alegria dos homens, não pode jamais reinar entre os membras de sua comunidade qualquer clima ou ambiente de tristeza ou, pior ainda, de terror sagrado como por vezes aconteceu ao longo da história. Mais que fiscalizações, críticas azedas, recriminações, cobranças, punições e castigos a Igreja, os cristãos, devem reger-se a partir do amor de Deus e de sua paz.

Por isso continua: trabalhai no vosso aperfeiçoamento, encorajai-vos, cultivai a concórdia, vivei em paz e o Deus do amor e da paz estará convoco (2Cor 13,11).

Segundo Mestre Eckhart, nessa sentença podemos ver a marca da Trindade. Pois, “Deus”, diz ele, aqui, “significa a pessoa do Pai”, fundamento de toda a deidade, segundo Agostinho. A expressão “da paz”, por sua vez, se refere ao Filho, pois “Ele é a nossa paz” (Ef 2, 14). E Pai e Filho, enfim, se amam no Espírito Santo.

Vem então, o grande arremate não apenas da conclusão mas de toda a Carta: A graça do Senhor Jesus Cristo, o amor de Deus e a comunhão do Espírito Santo estejam convosco! (2 Cor 13, 13). Por seu rico e profundo sentido trinitário, a Igreja propõe esta saudação como uma das saudações para o rito de acolhida dos fiéis na Missa. Três são as coisas aqui desejadas por São Paulo aos coríntios e hoje a nós:

- a graça do Senhor Jesus Cristo. A graça (cháris), em primeiro lugar, é o vigor da alegria da inocência que nos redime de toda a culpa, graça que nos advém pela Paixão de Cristo e de sua crucificação; graça que torna quem a recebe “filho de Deus”, “cristão” e “irmão de Cristo”. E isto não é pouco. É tudo!

- o amor do Pai. Aqui não se trata de qualquer amor, mas do amor “do Pai”, o amor-caridade (agápe)-doação. Quem, agradecido e jubiloso, canta e decanta esse amor é São Francisco: Ele é o bem pleno, todo o bem, o bem inteiro, o verdadeiro e sumo bem. ‘Só Ele é o bom’, o piedoso, o manso, o suave e o doce. Só Ele é o santo, o justo, o verdadeiro, o santo e o reto. Só Ele é o benigno, o inocente, o puro. D’Ele, ‘por Ele’ e n’Ele está todo o perdão, toda a graça, toda a glória de todos os penitentes e justos, de todos os bem-aventurados que com Ele se regozijam nos Céus (RNB 23,9).

- a comunhão do Espírito Santo. A terceira quota que nos é oferecida através dessa saudação paulina não é outra coisa senão a comunhão (a “comungação”) no amor comum do Pai e do Filho que então é derramado em nossos corações e em todas as criaturas. É o Dom em que ambos mutuamente se doam. Pois bem, diz São Paulo, esta máxima doação, máxima comunhão, se dá na máxima comunicação do Sumo Bem. De fato, diz São Boaventura, se é verdade que “o bem tende, por natureza, a difundir-se, com mais forte razão se pode dizer que é, pois, próprio do sumo Bem, difundir-se sumamente”.

Comentando esse mistério, assim se expressa o pensador Carneiro Leão: “O Bem da unidade circula eterna e incriada, para dentro, na Trindade, e se comunica temporal e livre, para fora na criação. É a unidade da Trindade que nos cria. Eckhart nos diz, junto com toda a experiência cristã: ‘ad extra ex tribos” (para fora a partir dos três) toda atividade para fora é criadora, vem e vive do Três” (Carneiro Leão, Emanuel. A mística de Eckhart em Eckhart).

Por isso e para isso São Francisco exortava seus frades: “E preparemos dentro de nós uma habitação e uma mansão para Ele que é o Senhor Deus, onipotente, Pai e Filho e Espírito Santo” (RNB 22,27).

3. Crer Naquele que muito os amou

Na perícope do Evangelho de hoje, Jesus, depois de falar a Nicodemos da necessidade de nascer do alto, da água e do Espírito para entrar no Reino de Deus, acrescenta: “Deus amou tanto o mundo que entregou o seu Filho Unigênito, para que todo o homem que acredita n’Ele não pereça, mas tenha a vida eterna” (Jo 3, 16).

3.1. A Cruz, o sumo da obra da Trindade santa

O sumo, pois, da revelação do ser de Deus – Amor-Ágape-Sacrifício - está na obra da cruz, em que o Pai entrega o seu Filho Unigênito ao mundo – isto é, aos homens por Ele criados e que Dele se afastaram fechando-se no amor de si mesmos e no desprezo de Deus. Deus, porém, faz o contrário! Em vez de fechar-se à sua criatura ou condená-la por esse pecado, sai e vem ao seu encontro a fim de que seja encontrada e reconduzida para a Sua casa.

Ao entregar-nos seu Filho, permitindo que nós O matássemos, é Ele – o Pai - que se entrega a nós; o Pai como que “se mata” para que nós possamos recebe-lo em sua entrega, em seu amor e, nessa recepção, possamos nós também doar-nos a Ele e assim sermos salvos, tornando-nos um com Ele e Nele, felizes, bem-aventurados. Eis a vida eterna! Morar na Casa do Pai, no mistério da Comunidade trinitária, a suma obra de nossa salvação!

Mas, há uma exigência para que aconteça em nós esse mistério: crer. Por isso, logo acrescenta: “Quem nele crer, não será condenado, mas quem não crê já está condenado” (Jo 3,18). Crer em Jesus implica acolher o Pai com seu desígnio amoroso de entregar-nos até a morte e morte de cruz seu Filho unigênito a fim de que Nele também nós sejamos seus filhos muito amados; significa acolher o Espírito Santo que Ele, Jesus, nos mereceu e enviou, para que assim não apenas não sejamos órfãos, mas possamos viver no e do vigor Daquele que venceu o mundo. Crer, enfim¸ como diz São Francisco, é Amar muito aquele que muito nos amou; é seguir a doutrina e as pegadas de Nosso Senhor Jesus Cristo.

São Francisco ao reger a missão dos frades entre os sarracenos e outros infiéis, ordena que em tudo e sempre vivam “espiritualmente”, isto é, segundo o Espírito. Por isso, como primeira forma de evangelizar propõe: “não entrem em litígios nem em contendas, mas sejam súditos de toda humana criatura por causa de Deus e confessem serem cristãos” (RNB 16,5). Depois, como segunda forma, exorta para que, “quando virem que agrada ao Senhor, anunciem a palavra de Deus para que creiam em Deus onipotente, Pai e Filho e Espírito Santo, Criador de todas as coisas, no Filho redentor e salvador, e que sejam batizados e se façam cristãos, porquanto quem não renascer da água e do Espírito Santo, não pode entrar no reino de Deus” (RNB 16,7).

3.2. Crer é nascer e crescer em Deus Pai e Filho e Espirito Santo

Assim, mais que acreditar, crer significa confiar-se, entregar-se a quem nos amou por primeiro. Nesse sentido crer é “nascer com” e “crescer em”. É como no casamento. Os esposos, movidos pelo mistério da graça do encontro não apenas passam a viver juntos, mas também, a crer um no outro, entregando-se mutuamente com toda a confiança, aconteça o que acontecer. E tudo isso é nascer ou conascer um no outro ao ponto de, no fim da vida, os dois serem uma só carne.

Assim, mas em grau de profundidade, júbilo e beleza infinitamente maior, se dá com a profissão da nossa fé: somos gerados, nascemos e crescemos em Deus Pai, em Deus Filho e em Deus Espírito Santo. Enfim, nascemos e vamos crescendo a partir da Fonte da Vida: o mistério da Santíssima Trindade, até que retornando a ela, pela nossa morte, em nossa páscoa (transitus = passagem), nela viveremos eternamente.

No santuário de Trindade, em Goiás, há um medalhão, em que Maria é introduzida no mistério da comunhão do Pai e do Filho e do Espírito Santo. É coroada pelo Pai e pelo Filho e sobre ela paira o Espírito Santo. A mensagem é muito simples, bela e significativa: Maria representa, ali, todos nós, que somos batizados para dentro do nome – isto é, da presença e vigência – do Pai e do Filho e do Espírito Santo. Representa, em última instância, toda a humanidade e toda a criação, que, nela e com ela, são trazidas para dentro desse mistério simples, originário e, ao mesmo tempo, trinitário, de Deus Pai-Filho-Espírito Santo.

É comum que, em certas ocasiões, ao cantarmos o hino nacional, nosso coração estremeça por ser ele um símbolo de nossa nação e de nossa pátria. O que não deveria acontecer, então, quando de pé, como Povo de Deus, perante nosso símbolo maior, a Cruz, professamos, alto e bom som: “Creio em Deus Pai, todo-poderoso, criador do céu e da terra e de todas as coisas visíveis e invisíveis!!! Creio em Jesus Cristo seu Filho unigênito de Deus, nascido do Pai antes de todos os séculos!!! Creio no Espírito Santo, Senhor que dá a vida, e procede do Pai e do Filho!!! (Símbolo niceno-constantinopolitano)!!!

Conclusão

A Igreja, nesse Domingo, reverente e jubilosa, põe-se de pé para contemplar, adorar e acolher o mistério originário e final de todos nós, da criação e da história toda: o mistério dos mistérios, a Trindade Santa. Por isso, inicia a solenidade de hoje com esse breve, mas expressivo e solene “Bendito”: “Bendito seja Deus Pai, bendito o Filho unigênito e bendito o Espírito Santo. Deus foi misericordioso conosco!” (Ant. de entrada).

Na verdade, o mistério da Trindade divina toca na raiz de cada criatura e de toda a história, como o diz claramente o Papa Francisco: “O Pai é a fonte última de tudo, fundamento amoroso e comunicativo de tudo o que existe. O Filho, que O reflete e por Quem tudo foi criado, uniu-Se a esta terra, quando foi formado no seio de Maria. O Espírito, vínculo infinito de amor, está intimamente presente no coração do universo, animando e suscitando novos caminhos. [...] Por isso, «quando, admirados, contemplamos o universo na sua grandeza e beleza, devemos louvar a inteira Trindade»” (LS 328). Nela está tanto o nosso princípio como o nosso fim, nossa destinação última, para a qual nos encaminhamos em nosso trânsito, em nossa passagem ou travessia da vida. Todos somos, assim, no fundo, com todo o universo, peregrinos da Trindade e para a Trindade. Daí o desafio: a necessidade de ler todas as criaturas e acontecimentos, toda a realidade, enfim, em chave trinitária. Pois, como diz São Boaventura: “cada criatura testemunha que Deus é trino” e que, por isso, “toda criatura traz em si uma estrutura propriamente trinitária” (LS 239).

O Pai pode ser contemplado quando olhamos o como e o quanto as criaturas levam adiante com fidelidade a ordem Dele “Crescei e multiplicai-vos...” (Gn 1,28); o Filho quando olhamos o como e o quanto as mesmas “criaturas servem, conhecem e obedecem ao seu Criador” (São Francisco, Ad 5); o Espírito Santo quando contemplamos o como e o quanto o universo inteiro vive unido, entrelaçado numa grande festa e de comunhão de diferentes e diferenças (Cf. Cântico das Criaturas).

Por isso, acrescenta o Papa, além de ler as criaturas em chave trinitária precisamos também buscar nelas “uma chave de nossa própria realização ... pois, na verdade, a pessoa humana cresce, amadurece e santifica-se tanto mais, quanto mais se relaciona, sai de si mesma para viver em comunhão com Deus, com os outros e com todas as criaturas” (LS 240).

E conclui o Papa: “Tudo está interligado, e isto convida-nos a maturar uma espiritualidade da solidariedade global que brota do mistério da Trindade” (idem). É por isso que nós cristãos nos habituamos a, em tudo que fazemos, principalmente no sacramento eucarístico, iniciar com a invocação: “Em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo!”. Ou com a doxologia: “Glória ao Pai e ao Filho e ao Espírito Santo!”.

São Francisco faz deste mistério originário a Vida e a Regra dele e dos Irmãos de sua Ordem: “Em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo! Esta é a vida e a Regra dos Irmãos...” (RNB, Pro). Por isso, também e depois, é com esta mesma invocação e doxologia que principia e termina quase todos os seus escritos. Foi também movido pela devoção às Três Pessoas divinas que, desejoso de encontrar as passagens do Evangelho, que devia seguir e viver, abriu por três vezes o livro sagrado (Cf. LTC 29,4).


Fraternalmente,

Marcos Aurélio Fernandes e Frei Dorvalino Fassini, ofm

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